Cada leitor guarda com carinho, açúcar e afeto a sua coleção em fascíoi;-los preferida. A minha é "A História da Música Popular Brasileira", da Abril Cultural, hoje disputada a peso de ouro em se-bos. Trata-se de uma série de LPs sobre compositores estelares da MPB, acompanhada de fotos e textos de alto nível.
Em um tour cultural na Toca do Vinícius - pequeno templo da bossa nova no coração de Ipanema -, garimpei quatro dessas preciosidades dedicadas a Wilson Batista, Ismael Silva, Geraldo Pereira e António Maria e Fernando Lobo. Ou seja, três sambistas essenciais da ÉpocadeOuro (de 1930 a 1945) e uma dupla que construiu alguns dos mais belos versos de desilusão amorosa de que se tem notícia.
O primeiro perfil a chamar-me a atenção foi o de Wilson Batista. Negro, pobre e se-mianalfabeto, o compositor foi o primeiro a fazer apologia explícita à marginalidade no início da década de 30. Seu "Lenço no Pescoço", gravado por Silvio Caldas em 1933, poderia ser adaptado (guardadas as devidas proporções) aos chefoes do tráfico das favelas do Rio: "Meu chapéu do lado/Tamanco arras-tando/Lenço no pescoço/Navalha no bolso/Eu passo gin-gando/Provoco e desafio/Eu tenho orgulho de ser tão vadio".
Mais do que retrato contundente da malandragem, Wilson Batista registrou em música o comportamentodeumaparcela da sociedade ignorada pelo poder público. E acabou dando início a uma polémica que entraria para a história da MPB. Preocupado com a imagem dos sambistas, Noel Rosa respondeu à ousadia do principiante com ares de bom moço no samba "Rapaz Folgado": "Malandro é palavra derrotista/Que só serve pra tirar/Todo o valor do sambista/Proponho ao povo civilizado/Não te chamar de malandro/E sim de rapaz folgado".
O erro - ou seria acerto? - de Batista foi ter decidido enfrentar Noel. Logicamente se deu mal. Fazendo alusão à origem de classe média do adversário, ele partiu para a agressão em "Mocinho da Vila": "Injusto é seu comentário/Falar de malandro quem é otário". Noel respondeu com a obra-prima "Feitiço da Vila", sua exaltação à Vila Isabel.
Diante do golpe de génio, o herói da Lapa foi conferir os encantos da Vila e, ao não enxergar nada do que o rival descrevera, espalhou que era tudo "Conversa Fiada". Noel, então, desmoralizou-o com "Palpite Infeliz". Nocauteado, Batista ainda tentou apelar para a baixaria em "Frankenstein da Vila", mas a vitória do oponente já estava sacramentada.
A ironia do destino é que os dois tornaram-se parceiros e, numa noite na Lapa, compuseram "Deixa de Ser Convencido", na qual Noel previu o destino que a posteridade reservaria ao ex-inimigo, de acordo com a brilhante percepção do pesquisador Joel Rufino dos Santos: "E no picadeiro desta vida/Serei o domador/Serás a fera abatida".
De fato, após a morte de Noel Rosa, em 1937, Wilson Batista criou sambas memoráveis como 'Acertei no Milhar" (com Geraldo Pereira), "Pedreiro Val-demar" (Roberto Martins) e "O Bonde São lanuário" (Ataulfo Alves), este último umaguinada para o trabalho e os bons costumes enquadrada pelo Estado Novo de Getúlio Vargas. Foi mestre na arte de retratar tipos e de cantar temas ligados ao povo como o carnaval, o futebol, o jogo do bicho.; Mas, para a história - e ela muitas vezes é cruel com os seus personagens -, ele ficará eternamente marcado como "aquele que brigou com Noel
- José Roberto Santos Neves
em A GAZETA Vitória (ES) , quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

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